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domingo, 15 de julho de 2012

CRÔNICA DE UM ASSALTO



Nota: este texto foi escrito em em sua maior partes em pleno voo de São Paulo para Roma. 
Relata sob a forma de conto ou crônica um assalto que sofri a caminho do aeroporto. 
Dei-lhe várias formas que aparecem aqui em seguida.   


[aos meninos que perderam o juízo]



Um orifício negro e um clique. Distraído, não percebi dois meninos agradáveis, sorridentes. Sorri. Na certa dois universitários de classe média divertindo-se na zona comercial do Itaím-Bibi. Bem vestidos, bom físico. Acreditei ter-lhes sentido o perfume acre, talvez cítrico. Que engraçada a juventude, distrair-se bisbilhotanto em taxis, estudando comportamentos, oferecendo serviços, promovendo dados novos para pesquisas de opinião. O que desejariam de mim? olhei-os e recordei meus filhos, os muitos sobrinhos que já passaram dessa idade linda dos vinte anos. Devem viver um vidão em São Paulo, paquerando meninas bonitas, trepando com a liberdade de viverem intensamente suas experiências sexuais. Pensei o que aconteceria no fim da noite [e ainda era meio de um dia claro, ensolarado] no prazer de beijos e amassos dentro de seus carrões que atualmente destacam o som em lugar do ronco do motor. Delícia a juventude! As músicas barulhentas de ritmos marcados. Esses dois levam um vidão, que inveja poder voltar a essa idade, o que o tempo deixou para traz! Lembrei-me do “rock’n roll” e de Elvis, num átimo voltei aos meus bailecos de interior e às sessões de cinema com meninas mais fáceis, as “biscates” que os meninos manipulavam no escurinho. Sentávamos vários, dois a dois, em série no revesamento dois por dois, para tocar os peitinhos duros de uma tesudinha que facilitava. Orgasmos escondidos no banheiro público, quantos gemidos…Aahh!

Um orifício negro e um clique. Sombras, silhuetas projetadas, puras, negras, incorpóreas. Uma gruta, escura, entrada para o mistério, o orifício negro. Cogito da idéia, não da realidade, mas da idéia de que o orifício delineado acentua na claridade do dia, ponto amplificado no brilho argênteo do metal do qual é centro equilíbrio no desequilíbrio de todas as idéias. A situação é sonho e iluminação, um salto para fora de mim mesmo e do tempo, como uma intimação a pesquisar no fundo de minha alma se o Estado é justo [o indivíduo só é justo se participar de um Estado justo?]. Indagação platônica que não me leva a conclusões nem a formulações novas. Assalta-me a lembrança da árvore cósmica cujas raízes vão aos infernos e os últimos galhos tocam o céu, o apocalipse e o midrash das tradições judaicas, Adão nascido e enterrado no centro do mundo, no Gólgota, onde mesmo Jesus seria crucificado, o umbigo, sei lá, tudo o mais que me passou como uma centelha para dizer-me que a saúde de minha alma estava ameaçada pela injustiça. Isso tudo parece discurso, mas minha dúvida foi repentina sobretudo sobre a Justiça que não pode pertencer apenas a uma parte. Ou é absoluta e se reparte igualitária ou não há Justiça; não é o coração ou o fígado que são justos, não as partes ou qualquer das partes, mas o homem é que é justo [ou injusto]. Não há Justiça das partes isoladamente. Pensei no anel de Giges como poeta…teria ele assassinado o rei, seduzido a rainha porque conseguira o dom da invisibilidade? O que ele não sabia?

Estou louco em um minuto e embaralho as idéias. Merda! O Orifício negro e o clique, não apenas um milésimo do segundo em que tudo me acontece. Tudo muito concreto, palpável, real. Meus filhos! Sempre pensei neles como um pai que lhes deseja vida e os proteje. Logo agora que estou para desdobrar-me duas vezes e tornar-me avô, esse contratempo! Saio de mim várias vezes e volto ao real de um simples ato sexual de outros tempos [que hoje já classifico como tempo da memória] e, sem fazer esforço algum, receber no colo parte de você mesmo, uma menininha que vai chorar, vai sorrir e dizer tudo o que você esperou de uma criança feliz, filha de seu sangue. A vida vale a pena de ser vivida quando há o bem estar da alma. Estou vivendo esse bem estar como o meu prêmio aos sessenta e cinco anos. Nem velho nem moço, sexagenário no ponto de inflexão para o setuagenário, feliz.

O vidro da janela do taxi baixa vagorosamente e ouço o clique e o berro: dispara! Não creio e continuo a admirar a beleza jovem do rapaz que me olha fixo nos olhos e baixa o ponto de visão do orifício negro que se tornou em um segundo o centro de minha vida. Brilha o metal em torno do orifício que é um ponto, que é o centro, o buraco onde se enraíza a árvore do mundo, a Justiça e a injustiça, o Gólgota [São Paulo], o meu centro.

As mãos firmes fixam o objeto de todas minhas lucubrações e não acredito, sou um cético e continuo minha vida íntima a desfilar momentos que se perpetuam na eternidade de cada lembrança. Minha mulher distante, ela nem vai acreditar no que estou pensando, mas sou obrigado a confessar que voltei à Igreja da Glória do Outeiro e a sua entrada linda em meio à nave, toda em branco no vestido mais elegante e simples que jamais vestiu. Curioso é que entrasse trazendo pela mão os dois meninos, um e outro, os mesmos que ali estavam diante de mim e que eram como meus filhos. Sacudi-me do torpor que podia ser um sonho ou uma fantasia e perguntei-me como seria quando recebesse a notícia de que no orifício negro partira o destino. Sombras.  

Os dois meninos tinham o seu anel de Giges naquela arma que me pareceu um brinquedo. Estavam invisíveis no seu poder de me submeter, sua justiça de um só fígado e nenhum coração, sanguinolenta ao final, sem dúvida. Não me senti ameaçado nem desafiado pelo risco que me pareceu falso. Nada me atingiria, um projétil seria incapaz de me ferir ou penetrar meu crâneo, sentia-me um super-homem ao lhes dizer com a convicção de minha incolumidade  que os cartões de crédito de nada lhes valeriam, não eram títulos ao portador, não se trocariam na esquina pela moeda que almejavam, mas que me valiam pelo menos a dispensa do trabalho de cancelá-los no primeiro telefone que encontrasse no caminho.

Dispara!

O menino de vermelho sorridente e bonito encostou o cotovelo sobre a porta do taxi e rearmou sua pistola, clique. Pediu-me que não demorasse, que acelerasse “as coisas” e eu acelerei o meu ritmo sem nenhuma exasperação, ainda falando-lhe que não carregava muito dinheiro. Não ficaria rico com aquele momento de desatino juvenil. Pensei na droga, droga! Estariam ali para alimentar-se da coca tão cara a Evo Morales e seus índios, um alimento incomparável, milenar, com vinte-e-seis aplicações nutritivas? O imperialismo rasgara suas vestes para impor-se à pobre Bolívia e perdera para um mero índio olhado com desprezo pelos bem-pensantes que supuzeram perpetuar a dominação com dólares para reversão de uma cultura [com “c minúsculo e com “c” maiúsculo]”. Vai levar tempo para que os equilíbrios se restabeleçam, enquanto a retórica vê-se transformada em fatos, o que não se sabe é se reais e praticáveis. A Justiça! De um só? De um grupo? De quantos, para ser absoluta e geral? ExistIrá? Estou maluco, pensar na Bolívia numa hora dessas, em Evo Morales e nos “gringos” que, dizia o jornal, agora “somos nós”?

Um passeio no tempo. Tenho um amigo misto de literato e agricultor do asfalto que é um cara de muito talento escondido no seu contorcionismo lítero-agrícola, entre cultura e sexo, mas tem razão quando desacredita. Ali senti que desacreditava de tudo e de qualquer coisa, tal como ele plantando abóboras na Praça Santos Dumont.  Um orifício negro e um clique. A caverna é mais profunda em sua escuridão. Para que estava eu lá submetendo-me a minhas veleidades, de um lado para outro no mundo, indagando sempre, respondendo nunca? A compaixão tomou-me conta da alma enquanto um menino engatilhava e o outro comandava.

Dispara!

Entreguei-lhe o relógio, um daqueles convencionais que relaciona espaço e tempo, infinitamente menos preciso do que o digital que mede o tempo das estrelas, fractais, mil milésimos de segundo e lá estava eu submetido e racional na irracionalidade de todas as razões. Um espírito livre? Nenhum espírito consegue a liberdade senão ao retornar a si mesmo. Quem disse isso? Nem sei mais, mas que importa quando o clique segue um – dispara! Merda, vai que ele dispara mesmo! Já imaginara a sangueira inespiritual sobre o tapete limpo do carro novo. Quem pagaria o prejuízo ao taxista que se mantinha impávido? Seguro nenhum, com cotação da seguradora na Bolsa, cobre um assalto idiota em que um sexagenário é vítima de dois rapazes sem juízo. Mas o sangue ia rolar e coagular e finalmente meu dia do Juízo dera-se a conhecer. Três de maio de 2006.

Meu hímen estava por romper-se.

Dispara!

Um orifício negro e um clique, regressando, de regresso em regresso toldando a luz nas sombras do íntimo da memória. Tudo em minutos que foram segundos, que foram milésimos fracionados, divididos, decompostos, supostos e pensados. Não sei se continuo porque estou aqui ou se estou aqui porque continuo nessa longa estrada que se interrompera quase, ontem …  

Roma, 4 de maio de 2006.

UM ASSALTO [UM CLIQUE DEPOIS]


CRÔNICA DE UM ASSALTO II

Puta merda, logo hoje vem esses caras me encher o saco com esse assalto. Meninos bonitos, bem vestidos, insinuantes [na certa trepam todo dia, enquanto eu já mais pra lá do que pra cá vou perdendo potência e higidez física]… Chegaram sem cerimônia, mandaram baixar o vidro do lado do passageiro onde eu me sentava no taxi a caminho do aeroporto com uma segurança de donos da bola [e de fato tinham uma pistola linda, prateada, bem desenhada, possivelmente leve]. Dois toques no vidro e o motorista logo baixou as calcinhas, quer dizer o vidro do meu lado [que bobo ele não era de baixar o dele].

Que perda de tempo! Eu com pressa para chegar no aeroporto, na rua Bandeira Paulista, movimentada, lojas nobres, e vem o menininho de camisa bege, sorridente e charmoso e me diz “passa tudo”. Que maluquice, pensei, passa tudo porque? Perguntei ainda sem muito ânimo – “o que você quer?”. A resposta veio do outro de camisa vermelha e bonezinho invertido na cabeça. Apoiou o cotovelo na janela para firmar o braço e engatilhou a pistola. Fiquei maravilhado com aquele aparelho fálico apontando-me o meio da testa. Lá estava eu refém de dois jovens bandidinhos bem arrumados, educados, cara de universitários.

Ao redor passavam carros, muita gente com sacolas de compras, um carro de som tocava um “jingle” anunciando “a segurança de um seguro de vida” e eu ali arriscando a minha bestamente. Porra, que vão querer eles com esse “passa tudo? Dou tudo ou não dou? Minto, finjo?

Lembrei de David que derrotou o Golias com uma tosca funda e pensei que com um bom golpe de braço eu arrancaria  a pistola da mão do rapaz, mas o diabo [o diabo estava presente e sorridente] era conseguir fazer em tempo talmente sincronizado que não permitisse o disparo. Temi pela bala no meio do crânio e imaginei que se penetrasse [sentia-me meio Capitão Marvel, com pele de aço, mas de repente com 65 anos o aço podia ter-se oxidado, não sei, já não fabricam mais aço como antigamente] seria um estrago menor, talvez ficasse apenas paralítico de alguns movimentos. Pela posição da arma a bala atingiria o lado direito, logo eu paralisaria o lado esquerdo. Será que todo? Pior se fosse bala “dundum”, que estilhaça e deixa pedacinhos milimetrados espalhados por todo o cérebro e todo mundo sabe que a massa encefálica é feito uma mousse só que não tem gosto de maracujá…

De repente senti a percepção do risco, um calafrio, de perder massa, inteligência, cabeça, talento! Idiota, você nunca teve nada disso! Presunção, não! Não é à toa que passam você para traz a toda hora e ocasião. Essa é a síndrome do cara modesto que acaba finalmente, convencido disso, descansado da correria que foi concorrer a vida toda para promoções, promoções, quadros de acesso, remoções, promoções. Merda!

A arma quase encostava na minha testa, logo acima do nariz, entre as sobrancelhas. Deu uma coceirinha fora de hora e quase pedi ao menino para coçar com a arma mesmo, mas ele podia pensar que eu estava gozando a cara dele…Olhei nos olhos dele e perguntei quantos anos tinha e ele repetiu o já monótono “passa tudo”. Desta vez eu respondi em português castiço, calmo e bem colocado: menino, tenho pouco dinheiro e acho que você não vai ficar satisfeito, não tenho celular [menti], não adianta levar os cartões de crédito que eu anulo ali na frente no primeiro telefone que encontrar e você só teve mais trabalho depois de ainda correr o risco de ser preso. Posso dar o relógio, é um ótimo Seiko de uns novecentos reais. Olhou-me incrédulo. Devia pensar que estava diante de um louco que conversava com ele em tom normal, tentando fazê-lo raciocinar um pouco. “Mas como? Pensaria: esse cara é mesmo um idiota, não percebe que a pistola vai lhe mandar chumbo com um toque meu no gatilho?”

Contei as vezes que o outro menino de camisa bege fora da calça gritava “dispara!”. Quatro. O meu preferido, segurando firme a pistola, armava-a mais uma vez e repetia o “passa tudo”. Passo o que tenho, nem mais nem menos, quer ver? Vou abrir o paletó e retirar a carteira. Nela, você vai ver cinco cartões de crédito [aliás um é de débito] e uns cento e oitenta reais. Tá bom? “Passa!”. Sem pressa, passei o dinheiro e exibi a carteira. “Agora o relógio”. Lentamente retirei meu Seiko de estimação do pulso e pensei nos bons serviços que me prestara, nas tantas vezes que me ajudara a chegar atrasado em reuniões, nas ocasiões que o culpei, na sua dureza japonesa inoxidável. Seria meu terceiro relógio roubado por ladrões de galinha, sempre ao lado do carro, parados nos faróis luminosos. Foi sempre como se quisessem roubar-me o tempo, mas o tempo insistiu em ficar comigo, passando, passando, passando, até me deixar velho como hoje sou. Não adianta nada perder o relógio. Nem roubado o tempo deixa-me. Passa sem relógio mesmo.

Sinto a síndrome de meus sessenta e cinco anos e digo ao menino que insistia em segurar a arma engatilhada em cima da minha testa que ele se está arriscando a matar-me e eu podia ser morto. Nada sentiria e passaria desta para a casa dos espíritos, enquanto ele ficaria com a culpa ou o sentimento dela, muito maior que a do cartório, seria acusado de um crime e poderia ser condenado pelo assassinato de um cidadão que poderia ser seu pai. Já pensou? Perguntei. Sem resposta, temi que o menininho me estivesse achando um chato e decici dar logo o relógio. Enquanto isso nos fractais, que se sucediam, o tempo não passava o minuto, mas eu sentia como se estivesse submetido àquela humilhação há horas. O motorista apatetado segurava firme a direção.

De repente, assim como chegaram foram-se e eu gritei com o motorista que partisse. Demorou o taxista catatônico, para o cúmulo [não o cu do mulo] acelerou muito devagar e vi o menino ordenador de camisa bege vindo em nossa direção. Dei um safanão no taxista e gritei de novo: acelera! Corre! Acelerou, mas não correu.

Disso resulta que estou vivo e ganhei mais essa experiência anônima de pessoas que me roubam a vida toda. É definitivamente a minha síndrome: ser roubado. Roubaram-me tudo, a carreira, os louros [não os caucasianos], os postos, menos o tempo, ainda que tenham levado os relógios: com este são dois Seikos [bons japoneses, meio precisos demais] e um Mido [um suiço de segunda classe que insiste em marcar o tempo com acerto]. Não seria pelo relógio ou pelos cento e oitenta reais que choraria perdas. Nem sei mais chorar…Só choro de emoção ou de raiva, mas não das perdas, que seria perda de tempo.  Voltei para o assalto cotidiano de gente graúda que não usa pistola. Estão na moda.

Roma, 5 de maio de 2006.

UM CLIQUE




Um orifício negro e um clique. Distraído, não percebi dois meninos agradáveis, sorridentes. Sorri. Na certa dois universitários de classe média divertindo-se na zona comercial do Itaím-Bibi. Bem vestidos, bom físico. Acreditei ter-lhes sentido o perfume acre, talvez cítrico. Que engraçada a juventude, distrair-se bisbilhotanto em taxis, estudando comportamentos, oferecendo serviços, promovendo dados novos para pesquisas de opinião. O que desejariam de mim? olhei-os e recordei meus filhos, os muitos sobrinhos que já passaram dessa idade linda dos vinte anos. Devem viver um vidão em São Paulo, paquerando meninas bonitas, trepando com a liberdade de viverem intensamente suas experiências sexuais. Pensei o que aconteceria no fim da noite [e ainda era meio de um dia claro, ensolarado] no prazer de beijos e amassos dentro de seus carrões que atualmente destacam o som em lugar do ronco do motor. Delícia a juventude! As músicas barulhentas de ritmos marcados. Esses dois levam um vidão, que inveja poder voltar a essa idade, o que o tempo deixou para traz! Lembrei-me do “rock’n roll” e de Elvis, num átimo voltei aos meus bailecos de interior e às sessões de cinema com meninas mais fáceis, as “biscates” que os meninos manipulavam no escurinho do cinema. Sentávamos vários, dois a dois, em série no revesamento dois por dois, para tocar os peitinhos duros de uma tesudinha que facilitava. Orgasmos escondidos no banheiro do cinema, quantos gemidos…Aahh!

Um orifício negro e um clique. Sombras, silhuetas projetadas, puras, negras, incorpóreas. Uma gruta, escura, entrada para o mistério, o orifício negro. Cogito da idéia, não da realidade, mas da idéia de que o orifício delineado acentua na claridade do dia, ponto amplificado no brilho argênteo do metal do qual é centro equilíbrio no desequilíbrio de todas as idéias. A situação é sonho e iluminação, um salto para fora de mim mesmo e do tempo, como uma intimação a pesquisar no fundo de minha alma se o Estado é justo [o indivíduo só é justo se participar de um Estado justo?]. Indagação platônica que não me leva a conclusões nem a formulações novas. Assalta-me a lembrança da árvore cósmica cujas raízes vão aos infernos e os últimos galhos tocam o céu, o apocalipse e o midrash das tradições judaicas, Adão nascido e enterrado no centro do mundo, no Gólgota, onde mesmo Jesus seria crucificado, o umbigo, sei lá, tudo o mais que me passou como uma centelha para dizer-me que a saúde de minha alma estava ameaçada pela injustiça. Isso tudo parece discurso, mas minha dúvida foi repentina sobretudo sobre a Justiça que não pode pertencer apenas a uma parte. Ou é absoluta e se reparte igualitária ou não há Justiça; não é o coração ou o fígado que são justos, não as partes ou qualquer das partes, mas o homem é que é justo [ou injusto]. Não há Justiça das partes isoladamente. Pensei no anel de Giges como poeta…teria ele assassinado o rei, seduzido a rainha porque conseguira o dom da invisibilidade? O que ele não sabia?

Estou louco em um minuto e embaralho as idéias. Merda! O Orifício negro e o clique, não apenas um milésimo do segundo em que tudo me acontece. Tudo muito concreto, palpável, real. Meus filhos! Sempre pensei neles como um pai que lhes deseja vida e os proteje. Logo agora que estou para desdobrar-me duas vezes e tornar-me avô, esse contratempo! Saio de mim várias vezes e volto ao real de um simples ato sexual de outros tempos [que hoje já classifico como tempo da memória] e, sem fazer esforço algum, receber no colo parte de você mesmo, uma menininha que vai chorar, vai sorrir e dizer tudo o que você esperou de uma criança feliz, filha de seu sangue. A vida vale a pena de ser vivida quando há o bem estar da alma. Estou vivendo esse bem estar como o meu prêmio aos sessenta e cinco anos. Nem velho nem moço, sexagenário no ponto de inflexão para o setuagenário, feliz.

O vidro da janela do taxi baixa vagorosamente e ouço o clique e o berro: dispara! Não creio e continuo a admirar a beleza jovem do rapaz que me olha fixo nos olhos e baixa o ponto de visão do orifício negro que se tornou em um segundo o centro de minha vida. Brilha o metal em torno do orifício que é um ponto, que é o centro, o buraco onde se enraíza o centro do mundo, a Justiça e a injustiça, o anel  de Giges, o Gólgota, o meu centro.

As mãos firmes fixam o objeto de todas minhas lucubrações e não acredito, sou um cético e continuo minha vida íntima a desfilar momentos que se perpetuam na eternidade de cada lembrança. Minha mulher distante, ela nem vai acreditar no que estou pensando, mas sou obrigado a confessar que voltei à Igreja da Glória do Outeiro e a sua entrada linda em meio à nave, toda em branco no vestido mais elegante e simples que jamais vestiu. Curioso é que entrasse trazendo pela mão os dois meninos, um e outro, os mesmos que ali estavam diante de mim e que eram como meus filhos. Sacudi-me do torpor que podia ser um sonho ou uma fantasia e perguntei-me como seria quando recebesse a notícia de que no orifício negro partira o destino. Sombras. A morte. 

Londres, 2005.