reflexões à vista de um rapaz autista
O jovem Lucas de olhar fixo no espaço aparentemente nada vê.
Pouco importa.
A esperança é fabricação da consciência, produto da inteligência, reflete um sentimento. É substantivo abstrato que se produz para o homem que se acredita criatura de Deus.
Diante do jovem não encontro muito o que dizer.
Pouco importa o que vê, pois o cenário passou e em nada contribuiu para uma decisão final, que lhe escapa na ultrapassagem do material para o imaterial.
Seu olhar opaco feito de estanho fixa-se no nada e entretém o tempo que insiste em passar.
Sentado quase imóvel diante da paisagem em movimento, o jovem estala os dedos e ouve o som distante do estalido que nada diz. Apenas mais um cacoete de viver.
Não se entende nem busca entender, deixa os fatos de fora e mergulha em si mesmo, incomodado sem o demonstrar.
Nada importa do que é ou que não é, daquilo que palavras tentam descrever sem confundir o real com o inteligível. O significado delas ninguém sabe, mas talvez sejam a representação do que entende [ou desentende?] a inteligência.
Provavelmente sabe que um dia até mesmo essa despercepção perecerá e o relógio de nada vale para contar o tempo.
Sente-se parte do espaço, como corpo que ocupa um volume, mais nada. O tempo não lhe pertence, o passado foi breve, breve demais divagará por um instante: o presente nunca existiu intangivel por natureza, ficção do que se destina a ser passado instantaneamente.
E o futuro, se nada pode prever, o que de fato é? Incomoda-o sem molestar o momento da ultrapassagem que tornará o futuro passado.
A memória é prerrogativa do cérebro que labora sobre sinapses jamais entendidas ou suficientemente explicadas na produção da inteligência, da consciência, da memória, da sensibilidade, da emoção.
Tudo passa e desfaz-se quando o concreto se desconcretiza.
Lucas olha sem olhar enquanto tento comunicar-me falando-lhe de Deus e da esperança. Sinto que ouve sem ouvir o que lhe parece improvável.
O lago seco de seus olhos mal reflete a luz, no que parece dizer “não tarda nada sermos”…”
“Isto pensado”, na voz poeta, “me de a mente absorve/ todos mais pensamentos”…
Refaço-me do susto de escutar o que não me é dito, mas retenho a idéia para contrariar-me.
Ressuscito a dúvida que me repete sou ou não sou? Se o "em breve nada serei" transforma-se no centro de meus pensamentos, então o nada ser resume a vida no seu lapso.
Embaralho idéias e confundo-me comigo em meio a “ermos astros afastados” ao qual nos acrescentamos.
Lucas permanece imóvel a estalar os dedos. Pergunto-me: “conheci-o antes, vi-o agora?” Tanto faz, tudo repete-se.
Rememoro o homem e a vida como a concebemos no movimento sem retorno do começo ao fim:
Um feto estrangulado pelo cordão umbelical que o liga à mãe depois da corrida acelerada do espermatozóide a encontrar o óvulo, o primeiro berro que inadvertidamente deslembra no desasossego inconsciente do impacto dos sons, toques e calores de seus primeiros momentos, seguido da consciência que o atordoa na compreensão do mundo.
Um jovem onde a tristeza – como antítese da alegria -- domina o gesto inexistente.
Sexo.
Recordo amores e o explodir do gozo no instinto que ilude, obrigando-me a fechar o foco sobre o que é mais sensível e está mais próximo.
A vida fundada nos “petits faits”, como um regime dietético alimentado pela objetividade e compaixão do instante.
Pouco, muito pouco.
A síntese o levou a sentar-se calado diante da paisagem que se move, a única a mover-se além dos dedos que estalam o estalido seco da compreensão ou da incompreensão, débil como o hálito hesitante de um moribundo a resistir ao último momento.
A visão da pequena história agride-me a compreensão dos dias e o decurso falso, que o jovem amadurece.
Teria trinta anos e retirara-se para esse seu “contacto” com a desmemória de olhar opaco no silêncio sem eco de suas reflexões incomunicadas, na renúncia dos instintos que resultam apenas no estalar dos dedos e no estalido seco.
Pouco importa.
19 de março de 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário