Nota: este texto foi escrito em em sua maior partes em pleno voo de São Paulo para Roma.
Relata sob a forma de conto ou crônica um assalto que sofri a caminho do aeroporto.
Dei-lhe várias formas que aparecem aqui em seguida.
[aos meninos que perderam o juízo]
Um orifício negro e um clique. Distraído, não percebi dois meninos
agradáveis, sorridentes. Sorri. Na certa dois universitários de classe média divertindo-se
na zona comercial do Itaím-Bibi. Bem vestidos, bom físico. Acreditei ter-lhes
sentido o perfume acre, talvez cítrico. Que engraçada a juventude, distrair-se
bisbilhotanto em taxis, estudando comportamentos, oferecendo serviços, promovendo
dados novos para pesquisas de opinião. O que desejariam de mim? olhei-os e
recordei meus filhos, os muitos sobrinhos que já passaram dessa idade linda dos
vinte anos. Devem viver um vidão em São Paulo, paquerando meninas bonitas,
trepando com a liberdade de viverem intensamente suas experiências sexuais. Pensei
o que aconteceria no fim da noite [e ainda era meio de um dia claro,
ensolarado] no prazer de beijos e amassos dentro de seus carrões que atualmente
destacam o som em lugar do ronco do motor. Delícia a juventude! As músicas
barulhentas de ritmos marcados. Esses dois levam um vidão, que inveja poder
voltar a essa idade, o que o tempo deixou para traz! Lembrei-me do “rock’n
roll” e de Elvis, num átimo voltei aos meus bailecos de interior e às sessões
de cinema com meninas mais fáceis, as “biscates” que os meninos manipulavam no
escurinho. Sentávamos vários, dois a dois, em série no revesamento dois por
dois, para tocar os peitinhos duros de uma tesudinha que facilitava. Orgasmos
escondidos no banheiro público, quantos gemidos…Aahh!
Um orifício negro e um clique. Sombras, silhuetas projetadas, puras,
negras, incorpóreas. Uma gruta, escura, entrada para o mistério, o orifício
negro. Cogito da idéia, não da realidade, mas da idéia de que o orifício
delineado acentua na claridade do dia, ponto amplificado no brilho argênteo do
metal do qual é centro equilíbrio no desequilíbrio de todas as idéias. A
situação é sonho e iluminação, um salto para fora de mim mesmo e do tempo, como
uma intimação a pesquisar no fundo de minha alma se o Estado é justo [o
indivíduo só é justo se participar de um Estado justo?]. Indagação platônica
que não me leva a conclusões nem a formulações novas. Assalta-me a lembrança da
árvore cósmica cujas raízes vão aos infernos e os últimos galhos tocam o céu, o
apocalipse e o midrash das tradições
judaicas, Adão nascido e enterrado no centro do mundo, no Gólgota, onde mesmo
Jesus seria crucificado, o umbigo, sei lá, tudo o mais que me passou como uma
centelha para dizer-me que a saúde de minha alma estava ameaçada pela
injustiça. Isso tudo parece discurso, mas minha dúvida foi repentina sobretudo
sobre a Justiça que não pode pertencer apenas a uma parte. Ou é absoluta e se
reparte igualitária ou não há Justiça; não é o coração ou o fígado que são
justos, não as partes ou qualquer das partes, mas o homem é que é justo [ou
injusto]. Não há Justiça das partes isoladamente. Pensei no anel de Giges como
poeta…teria ele assassinado o rei, seduzido a rainha porque conseguira o dom da
invisibilidade? O que ele não sabia?
Estou louco em um minuto e embaralho as idéias. Merda! O Orifício negro
e o clique, não apenas um milésimo do segundo em que tudo me acontece. Tudo
muito concreto, palpável, real. Meus filhos! Sempre pensei neles como um pai
que lhes deseja vida e os proteje. Logo agora que estou para desdobrar-me duas
vezes e tornar-me avô, esse contratempo! Saio de mim várias vezes e volto ao
real de um simples ato sexual de outros tempos [que hoje já classifico como
tempo da memória] e, sem fazer esforço algum, receber no colo parte de você
mesmo, uma menininha que vai chorar, vai sorrir e dizer tudo o que você esperou
de uma criança feliz, filha de seu sangue. A vida vale a pena de ser vivida
quando há o bem estar da alma. Estou vivendo esse bem estar como o meu prêmio
aos sessenta e cinco anos. Nem velho nem moço, sexagenário no ponto de inflexão
para o setuagenário, feliz.
O vidro da janela do taxi baixa vagorosamente e ouço o clique e o berro:
dispara! Não creio e continuo a admirar a beleza jovem do rapaz que me olha
fixo nos olhos e baixa o ponto de visão do orifício negro que se tornou em um
segundo o centro de minha vida. Brilha o metal em torno do orifício que é um
ponto, que é o centro, o buraco onde se enraíza a árvore do mundo, a Justiça e
a injustiça, o Gólgota [São Paulo], o meu centro.
As mãos firmes fixam o objeto de todas minhas lucubrações e não
acredito, sou um cético e continuo minha vida íntima a desfilar momentos que se
perpetuam na eternidade de cada lembrança. Minha mulher distante, ela nem vai
acreditar no que estou pensando, mas sou obrigado a confessar que voltei à
Igreja da Glória do Outeiro e a sua entrada linda em meio à nave, toda em
branco no vestido mais elegante e simples que jamais vestiu. Curioso é que
entrasse trazendo pela mão os dois meninos, um e outro, os mesmos que ali
estavam diante de mim e que eram como meus filhos. Sacudi-me do torpor que
podia ser um sonho ou uma fantasia e perguntei-me como seria quando recebesse a
notícia de que no orifício negro partira o destino. Sombras.
Os dois meninos tinham o seu anel de Giges naquela arma que me pareceu
um brinquedo. Estavam invisíveis no seu poder de me submeter, sua justiça de um
só fígado e nenhum coração, sanguinolenta ao final, sem dúvida. Não me senti
ameaçado nem desafiado pelo risco que me pareceu falso. Nada me atingiria, um
projétil seria incapaz de me ferir ou penetrar meu crâneo, sentia-me um
super-homem ao lhes dizer com a convicção de minha incolumidade que os cartões de crédito de nada lhes
valeriam, não eram títulos ao portador, não se trocariam na esquina pela moeda
que almejavam, mas que me valiam pelo menos a dispensa do trabalho de
cancelá-los no primeiro telefone que encontrasse no caminho.
Dispara!
O menino de vermelho sorridente e bonito encostou o cotovelo sobre a
porta do taxi e rearmou sua pistola, clique. Pediu-me que não demorasse, que
acelerasse “as coisas” e eu acelerei o meu ritmo sem nenhuma exasperação, ainda
falando-lhe que não carregava muito dinheiro. Não ficaria rico com aquele
momento de desatino juvenil. Pensei na droga, droga! Estariam ali para
alimentar-se da coca tão cara a Evo Morales e seus índios, um alimento
incomparável, milenar, com vinte-e-seis aplicações nutritivas? O imperialismo
rasgara suas vestes para impor-se à pobre Bolívia e perdera para um mero índio
olhado com desprezo pelos bem-pensantes que supuzeram perpetuar a dominação com
dólares para reversão de uma cultura [com “c minúsculo e com “c” maiúsculo]”.
Vai levar tempo para que os equilíbrios se restabeleçam, enquanto a retórica
vê-se transformada em fatos, o que não se sabe é se reais e praticáveis. A
Justiça! De um só? De um grupo? De quantos, para ser absoluta e geral?
ExistIrá? Estou maluco, pensar na Bolívia numa hora dessas, em Evo Morales e
nos “gringos” que, dizia o jornal, agora “somos nós”?
Um passeio no tempo. Tenho um amigo misto de literato e agricultor do
asfalto que é um cara de muito talento escondido no seu contorcionismo
lítero-agrícola, entre cultura e sexo, mas tem razão quando desacredita. Ali
senti que desacreditava de tudo e de qualquer coisa, tal como ele plantando
abóboras na Praça Santos Dumont. Um
orifício negro e um clique. A caverna é mais profunda em sua escuridão. Para
que estava eu lá submetendo-me a minhas veleidades, de um lado para outro no
mundo, indagando sempre, respondendo nunca? A compaixão tomou-me conta da alma
enquanto um menino engatilhava e o outro comandava.
Dispara!
Entreguei-lhe o relógio, um daqueles convencionais que relaciona espaço
e tempo, infinitamente menos preciso do que o digital que mede o tempo das
estrelas, fractais, mil milésimos de segundo e lá estava eu submetido e
racional na irracionalidade de todas as razões. Um espírito livre? Nenhum
espírito consegue a liberdade senão ao retornar a si mesmo. Quem disse isso?
Nem sei mais, mas que importa quando o clique segue um – dispara! Merda, vai
que ele dispara mesmo! Já imaginara a sangueira inespiritual sobre o tapete
limpo do carro novo. Quem pagaria o prejuízo ao taxista que se mantinha
impávido? Seguro nenhum, com cotação da seguradora na Bolsa, cobre um assalto
idiota em que um sexagenário é vítima de dois rapazes sem juízo. Mas o sangue
ia rolar e coagular e finalmente meu dia do Juízo dera-se a conhecer. Três de
maio de 2006.
Meu hímen estava por romper-se.
Dispara!
Um orifício negro e um clique, regressando, de regresso em regresso
toldando a luz nas sombras do íntimo da memória. Tudo em minutos que foram
segundos, que foram milésimos fracionados, divididos, decompostos, supostos e
pensados. Não sei se continuo porque estou aqui ou se estou aqui porque
continuo nessa longa estrada que se interrompera quase, ontem …
Roma, 4 de maio de 2006.