Um orifício negro e um clique. Distraído, não percebi dois meninos
agradáveis, sorridentes. Sorri. Na certa dois universitários de classe média divertindo-se
na zona comercial do Itaím-Bibi. Bem vestidos, bom físico. Acreditei ter-lhes
sentido o perfume acre, talvez cítrico. Que engraçada a juventude, distrair-se
bisbilhotanto em taxis, estudando comportamentos, oferecendo serviços, promovendo
dados novos para pesquisas de opinião. O que desejariam de mim? olhei-os e
recordei meus filhos, os muitos sobrinhos que já passaram dessa idade linda dos
vinte anos. Devem viver um vidão em São Paulo, paquerando meninas bonitas,
trepando com a liberdade de viverem intensamente suas experiências sexuais.
Pensei o que aconteceria no fim da noite [e ainda era meio de um dia claro,
ensolarado] no prazer de beijos e amassos dentro de seus carrões que atualmente
destacam o som em lugar do ronco do motor. Delícia a juventude! As músicas
barulhentas de ritmos marcados. Esses dois levam um vidão, que inveja poder
voltar a essa idade, o que o tempo deixou para traz! Lembrei-me do “rock’n
roll” e de Elvis, num átimo voltei aos meus bailecos de interior e às sessões
de cinema com meninas mais fáceis, as “biscates” que os meninos manipulavam no
escurinho do cinema. Sentávamos vários, dois a dois, em série no revesamento
dois por dois, para tocar os peitinhos duros de uma tesudinha que facilitava. Orgasmos
escondidos no banheiro do cinema, quantos gemidos…Aahh!
Um orifício negro e um clique. Sombras, silhuetas projetadas, puras,
negras, incorpóreas. Uma gruta, escura, entrada para o mistério, o orifício
negro. Cogito da idéia, não da realidade, mas da idéia de que o orifício
delineado acentua na claridade do dia, ponto amplificado no brilho argênteo do
metal do qual é centro equilíbrio no desequilíbrio de todas as idéias. A
situação é sonho e iluminação, um salto para fora de mim mesmo e do tempo, como
uma intimação a pesquisar no fundo de minha alma se o Estado é justo [o
indivíduo só é justo se participar de um Estado justo?]. Indagação platônica
que não me leva a conclusões nem a formulações novas. Assalta-me a lembrança da
árvore cósmica cujas raízes vão aos infernos e os últimos galhos tocam o céu, o
apocalipse e o midrash das tradições
judaicas, Adão nascido e enterrado no centro do mundo, no Gólgota, onde mesmo
Jesus seria crucificado, o umbigo, sei lá, tudo o mais que me passou como uma
centelha para dizer-me que a saúde de minha alma estava ameaçada pela
injustiça. Isso tudo parece discurso, mas minha dúvida foi repentina sobretudo
sobre a Justiça que não pode pertencer apenas a uma parte. Ou é absoluta e se
reparte igualitária ou não há Justiça; não é o coração ou o fígado que são
justos, não as partes ou qualquer das partes, mas o homem é que é justo [ou
injusto]. Não há Justiça das partes isoladamente. Pensei no anel de Giges como
poeta…teria ele assassinado o rei, seduzido a rainha porque conseguira o dom da
invisibilidade? O que ele não sabia?
Estou louco em um minuto e embaralho as idéias. Merda! O Orifício negro
e o clique, não apenas um milésimo do segundo em que tudo me acontece. Tudo
muito concreto, palpável, real. Meus filhos! Sempre pensei neles como um pai
que lhes deseja vida e os proteje. Logo agora que estou para desdobrar-me duas
vezes e tornar-me avô, esse contratempo! Saio de mim várias vezes e volto ao
real de um simples ato sexual de outros tempos [que hoje já classifico como
tempo da memória] e, sem fazer esforço algum, receber no colo parte de você
mesmo, uma menininha que vai chorar, vai sorrir e dizer tudo o que você esperou
de uma criança feliz, filha de seu sangue. A vida vale a pena de ser vivida
quando há o bem estar da alma. Estou vivendo esse bem estar como o meu prêmio
aos sessenta e cinco anos. Nem velho nem moço, sexagenário no ponto de inflexão
para o setuagenário, feliz.
O vidro da janela do taxi baixa vagorosamente e ouço o clique e o berro:
dispara! Não creio e continuo a admirar a beleza jovem do rapaz que me olha
fixo nos olhos e baixa o ponto de visão do orifício negro que se tornou em um
segundo o centro de minha vida. Brilha o metal em torno do orifício que é um
ponto, que é o centro, o buraco onde se enraíza o centro do mundo, a Justiça e
a injustiça, o anel de Giges, o Gólgota,
o meu centro.
As mãos firmes fixam o objeto de todas minhas lucubrações e não
acredito, sou um cético e continuo minha vida íntima a desfilar momentos que se
perpetuam na eternidade de cada lembrança. Minha mulher distante, ela nem vai
acreditar no que estou pensando, mas sou obrigado a confessar que voltei à Igreja
da Glória do Outeiro e a sua entrada linda em meio à nave, toda em branco no
vestido mais elegante e simples que jamais vestiu. Curioso é que entrasse
trazendo pela mão os dois meninos, um e outro, os mesmos que ali estavam diante
de mim e que eram como meus filhos. Sacudi-me do torpor que podia ser um sonho
ou uma fantasia e perguntei-me como seria quando recebesse a notícia de que no
orifício negro partira o destino. Sombras. A morte.
Londres, 2005.
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