CRÔNICA DE UM ASSALTO II
Puta merda, logo
hoje vem esses caras me encher o saco com esse assalto. Meninos bonitos, bem
vestidos, insinuantes [na certa trepam todo dia, enquanto eu já mais pra lá do
que pra cá vou perdendo potência e higidez física]… Chegaram sem cerimônia,
mandaram baixar o vidro do lado do passageiro onde eu me sentava no taxi a
caminho do aeroporto com uma segurança de donos da bola [e de fato tinham uma
pistola linda, prateada, bem desenhada, possivelmente leve]. Dois toques no
vidro e o motorista logo baixou as calcinhas, quer dizer o vidro do meu lado
[que bobo ele não era de baixar o dele].
Que perda de
tempo! Eu com pressa para chegar no aeroporto, na rua Bandeira Paulista,
movimentada, lojas nobres, e vem o menininho de camisa bege, sorridente e
charmoso e me diz “passa tudo”. Que maluquice, pensei, passa tudo porque?
Perguntei ainda sem muito ânimo – “o que você quer?”. A resposta veio do outro
de camisa vermelha e bonezinho invertido na cabeça. Apoiou o cotovelo na janela
para firmar o braço e engatilhou a pistola. Fiquei maravilhado com aquele
aparelho fálico apontando-me o meio da testa. Lá estava eu refém de dois jovens
bandidinhos bem arrumados, educados, cara de universitários.
Ao redor
passavam carros, muita gente com sacolas de compras, um carro de som tocava um
“jingle” anunciando “a segurança de um seguro de vida” e eu ali arriscando a
minha bestamente. Porra, que vão querer eles com esse “passa tudo? Dou tudo ou
não dou? Minto, finjo?
Lembrei de David
que derrotou o Golias com uma tosca funda e pensei que com um bom golpe de
braço eu arrancaria a pistola da mão do
rapaz, mas o diabo [o diabo estava presente e sorridente] era conseguir fazer
em tempo talmente sincronizado que não permitisse o disparo. Temi pela bala no meio
do crânio e imaginei que se penetrasse [sentia-me meio Capitão Marvel, com pele
de aço, mas de repente com 65 anos o aço podia ter-se oxidado, não sei, já não
fabricam mais aço como antigamente] seria um estrago menor, talvez ficasse
apenas paralítico de alguns movimentos. Pela posição da arma a bala atingiria o
lado direito, logo eu paralisaria o lado esquerdo. Será que todo? Pior se fosse
bala “dundum”, que estilhaça e deixa pedacinhos milimetrados espalhados por
todo o cérebro e todo mundo sabe que a massa encefálica é feito uma mousse só
que não tem gosto de maracujá…
De repente senti
a percepção do risco, um calafrio, de perder massa, inteligência, cabeça,
talento! Idiota, você nunca teve nada disso! Presunção, não! Não é à toa que
passam você para traz a toda hora e ocasião. Essa é a síndrome do cara modesto
que acaba finalmente, convencido disso, descansado da correria que foi
concorrer a vida toda para promoções, promoções, quadros de acesso, remoções,
promoções. Merda!
A arma quase
encostava na minha testa, logo acima do nariz, entre as sobrancelhas. Deu uma
coceirinha fora de hora e quase pedi ao menino para coçar com a arma mesmo, mas
ele podia pensar que eu estava gozando a cara dele…Olhei nos olhos dele e
perguntei quantos anos tinha e ele repetiu o já monótono “passa tudo”. Desta
vez eu respondi em português castiço, calmo e bem colocado: menino, tenho pouco
dinheiro e acho que você não vai ficar satisfeito, não tenho celular [menti],
não adianta levar os cartões de crédito que eu anulo ali na frente no primeiro
telefone que encontrar e você só teve mais trabalho depois de ainda correr o
risco de ser preso. Posso dar o relógio, é um ótimo Seiko de uns novecentos
reais. Olhou-me incrédulo. Devia pensar que estava diante de um louco que conversava
com ele em tom normal, tentando fazê-lo raciocinar um pouco. “Mas como?
Pensaria: esse cara é mesmo um idiota, não percebe que a pistola vai lhe mandar
chumbo com um toque meu no gatilho?”
Contei as vezes
que o outro menino de camisa bege fora da calça gritava “dispara!”. Quatro. O
meu preferido, segurando firme a pistola, armava-a mais uma vez e repetia o
“passa tudo”. Passo o que tenho, nem mais nem menos, quer ver? Vou abrir o
paletó e retirar a carteira. Nela, você vai ver cinco cartões de crédito [aliás
um é de débito] e uns cento e oitenta reais. Tá bom? “Passa!”. Sem pressa,
passei o dinheiro e exibi a carteira. “Agora o relógio”. Lentamente retirei meu
Seiko de estimação do pulso e pensei nos bons serviços que me prestara, nas
tantas vezes que me ajudara a chegar atrasado em reuniões, nas ocasiões que o
culpei, na sua dureza japonesa inoxidável. Seria meu terceiro relógio roubado
por ladrões de galinha, sempre ao lado do carro, parados nos faróis luminosos.
Foi sempre como se quisessem roubar-me o tempo, mas o tempo insistiu em ficar
comigo, passando, passando, passando, até me deixar velho como hoje sou. Não
adianta nada perder o relógio. Nem roubado o tempo deixa-me. Passa sem relógio
mesmo.
Sinto a síndrome
de meus sessenta e cinco anos e digo ao menino que insistia em segurar a arma
engatilhada em cima da minha testa que ele se está arriscando a matar-me e eu
podia ser morto. Nada sentiria e passaria desta para a casa dos espíritos,
enquanto ele ficaria com a culpa ou o sentimento dela, muito maior que a do
cartório, seria acusado de um crime e poderia ser condenado pelo assassinato de
um cidadão que poderia ser seu pai. Já pensou? Perguntei. Sem resposta, temi
que o menininho me estivesse achando um chato e decici dar logo o relógio.
Enquanto isso nos fractais, que se sucediam, o tempo não passava o minuto, mas
eu sentia como se estivesse submetido àquela humilhação há horas. O motorista
apatetado segurava firme a direção.
De repente,
assim como chegaram foram-se e eu gritei com o motorista que partisse. Demorou
o taxista catatônico, para o cúmulo [não o cu do mulo] acelerou muito devagar e
vi o menino ordenador de camisa bege vindo em nossa direção. Dei um safanão no
taxista e gritei de novo: acelera! Corre! Acelerou, mas não correu.
Disso resulta
que estou vivo e ganhei mais essa experiência anônima de pessoas que me roubam
a vida toda. É definitivamente a minha síndrome: ser roubado. Roubaram-me
tudo, a carreira, os louros [não os caucasianos], os postos, menos o tempo,
ainda que tenham levado os relógios: com este são dois Seikos [bons japoneses,
meio precisos demais] e um Mido [um suiço de segunda classe que insiste em
marcar o tempo com acerto]. Não seria pelo relógio ou pelos cento e oitenta
reais que choraria perdas. Nem sei mais chorar…Só choro de emoção ou de raiva,
mas não das perdas, que seria perda de tempo.
Voltei para o assalto cotidiano de gente graúda que não usa pistola. Estão
na moda.
Roma, 5 de maio
de 2006.
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