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sábado, 30 de janeiro de 2010

LUCIDEZ





Às vezes em dias claros ele acorda feliz, abre em par as portas do balcão sobre a rua, debruça-se sobre o movimento, gente e veículos, enquanto mais adiante, em pequena praça meninos e rapazes batem bola semi-nus gritando palavras de ordem e palavrões – Tô livre! Passa! passa! Filho duma égua! Passa!

Mil idéias misturam-se em sua cabeça sobre aproveitar o dia. Em outros tempos sairia, bateria a porta ainda calçando os sapatos, enfiando a camisa para dentro das calças, abotaria os últimos botões já na calçada. As idéias viriam depois.

Pensa em seus amigos que jogavam bola, imagina o velho campo à beira-rio ainda molhado do orvalho pisado por rapazes na força da idade, rápidos, malandros na posse da bola, eretos, atléticos, bonitos. Uma paradinha, um olhar instantâneo e o toque na bola alcança o outro lado do campo, virando o jogo para que o ponta acelere a entrada na área que ali nem era grande nem pequena, mas a única nem mesmo traçada, mas imaginada.

Queria jogar, sentia o apelo da torcida como a emoção maior que poderia viver, correr com a bola nos pés em direção ao gol foi sempre sua meta no campo e fora dele.

Sua fascinação foi desde menino e rapaz o futebol e os onze no campo trocando passes mágicos para chegar violentos ou jeitosos à meta. Adorou Vavá, Didi, Pelé e Ademir da Guia em tempos diferentes. Nunca se acomodou com o aparente sem jeito das pernas tortas do Garrincha nem com a velocidade cega do Zagalo.

O Maracanã foi sua casa aos domingos alternada com o campo da General Severiano onde podia também conversar com os jogadores e saber de sua tensão antes dos grandes jogos. Nada o atraiu no Vasco, tudo o identificou com o Flamengo, foi e continuava sendo um fanático pela seleção.

Hoje nos dias alegres de muito sol e calor abre as mesmas janelas e sonha com o que passou. Seus sonhos têm muitas cores, sua imaginação, movimento, cada etapa repete a emoção dos jogos de que participou, adora os palavrões contra o juiz: “filho da puta! Sua mãe é vagabunda do Mangue!” Ora, até o Mangue volta à memória com as casas de longos corredores e mulheres de calcinha cheirando a perfume barato, homens que circulam de uma casa a outra pelas ruas do bairro pobre onde a polícia faz vista grossa para todos os pecados.

Por algum mistério, a lembrança é viva mas a realidade agoniza na emoção contida, tudo parece distante sem a graça de outros tempos. O sonho entretanto persiste, tem o direito de sonhar e atualmente esforça-se para ter as cenas repetidas em cores, “Technicolor”, e fecha os olhos miudinhos e lavados para sonhar a cores o que lhe vem cada vez mais em preto-e-branco. Tem consciência de que as folhas dos arbustos que irracionalmente crescem em espaços à frente de sua casa são verdes e a cancela da linha de trem é amarela, o que lembra o verde da bandeira com que compõe sua paixão pela seleção canarinho e os campeonatos ganhos na Suécia, no Chile, no México...

Quanto sofrimento na Espanha, quanta alegria nos Estados Unidos depois de uma disputa com a “Squadra Azzurra” que sempre temeu.

Vive de viver cada coisa para gozar a existência, transferindo-as invisíveis, como dons da memória, para si mesmo, incorpora-as como formas.

Pensa rápido e deixa passar o contraste para fixar-se na sensação gostosa da brisa que sopra suave e perfeita. Pergunta-se o que faz soprar a brisa, indaga-se curioso de onde vem e nada ignora das diferenças de pressão e temperatura condicionando esse suspiro da natureza, mas insiste em perguntar-se para preencher o vazio das coisas que estão à frente.

A noite o escuro da plena escuridão apavora. Nem as estrelas nem a lua servem-lhe de consolo. Nem parecem existir, lembra-se que são belas mas é a beleza ativada de sua memória

Acompanha-o o fiel Duque, um pastor alemão dócil, que fielmente aninha-se a seus pés enquanto mais desajeitado do que Garrincha patina com os pés no chão frio. Não usa meias e por isso ouve as reclamações da velha mãe que o deseja agasalhado dos pés à cabeça. A cabeça, sempre a cabeça como peça central de sua vida, e os cuidados em várias vezes ao dia de sua dedicada e velha mãe. “Ah! Se não fosse ela, o que seria de mim?” pergunta-se amuado, em algumas ocasiões revoltado, se não fosse ela seria Duque e mais ninguém. De gente e animal ninguém.

Gosta do toque nos pelos macios de Duque, sente o bafo quente do nariz frio e percebe quando pensa para indicar um problema. Duque respira mais afogueado quando a porta se abre para sairem à rua, mas jamais sai na carreira, respeitando o passo do mestre que o conduz. Ou vice-versa?

Compartilha com o cão as suas dúvidas, perguntando macio e em tom de carinho, - “tudo bem? podemos avançar?” Duque conhece sua insegurança e paixões, late mais forte ao ver a bola correndo de pé-em-pé. Parece querer jogar, deseja o passe, mas não usa palavrões. Deixa o mestre à vontade para tomar a iniciativa e acompanha em movimentos da cabeça e do corpo as direções da bola tanto quando o mestre balança a sua na mesma direção, sincronizadamente.

À sua maneira é feliz, faz Duque um cão mais atento do que o normal do comportamento da raça e parece transferir ao belo animal seus sentimentos pelos onze que correm no campo encharcado em janeiro, sequíssimo em agosto. Torce pelo time que joga à esquerda no primeiro tempo e à direita no segundo, gosta de Deco, um jogador tinhoso que passa à frente de todos. Berros repetidos – “passa! passa! estou livre!”

A idéia de liberdade o seduz porque a sente lúcido enquanto redonda vem a bola no ar e Deco a toca com sua energia e talento, para ouvir-se o grito de GOOOOL!

É um momento solene como ritual de um culto que busca o contato com o criador. É a eucaristia de seus momentos felizes, com o time da esquerda que inicia a partida em vantagem. É filosofia. Não sabe o que é a paixão pelo futebol quem não a sente! É esquecer o misticismo da combinação de passes e a êxtase do gol.

O mestre e seu cão vivem as alegrias compartilhadas com Deco ágil no campo, centro-avante habilidoso, enquanto Duque assinala os passes com seu latido atonal quando há erro, absolutamente tônico quando o acerto é ameaçador. Graças a Deus que Duque entende de futebol e o compreende por dentro, dialogando com o mestre como dois técnicos são capazes, no átono e no tônico de suas reprovações e aprovações.

Sua solidão seria completa sem Duque, sua alegria é absoluta por Deco.

Seu dia termina em noite, noite que lhe é presente enquanto Duque silencia...

Roma, setembro de 2003




CRÔNICA DE UM ASSALTO




CRÔNICA DE UM ASSALTO II

Puta merda, logo hoje vem esses caras me encher o saco com esse assalto. Meninos bonitos, bem vestidos, insinuantes [na certa trepam todo dia e têm pau grande, enquanto eu já mais pra lá do que pra cá vou perdendo potência e higidez física]… Chegaram sem cerimônia, mandaram baixar o vidro do lado do passageiro onde eu me sentava no taxi a caminho do aeroporto com uma segurança de donos da bola [e de fato tinham uma pistola linda, prateada, bem desenhada, possivelmente leve]. Dois toques no vidro e o motorista logo baixou as calcinhas, quer dizer o vidro do meu lado [que bobo ele não era de baixar o dele].

Que perda de tempo! Eu com pressa para chegar no aeroporto, na rua Bandeira Paulista, movimentada, lojas nobres, e vem o menininho de camisa bege, sorridente e charmoso e me diz “passa tudo”. Que maluquice, pensei, passa tudo porque? Perguntei ainda sem muito ânimo – “o que você quer?”. A resposta veio do outro de camisa vermelha e bonezinho invertido na cabeça. Apoiou o cotovelo na janela para firmar o braço e engatilhou a pistola. Fiquei maravilhado com aquele aparelho fálico apontando-me o meio da testa. Lá estava eu refém de dois jovens bandidinhos bem arrumados, educados, cara de universitários.

Ao redor passavam carros, muita gente com sacolas de compras, um carro de som tocava um “jingle” anunciando “a segurança de um seguro de vida” e eu ali arriscando a minha bestamente. Porra, que vão querer eles com esse “passa tudo? Dou tudo ou não dou? Minto, finjo?

Lembrei de David que derrotou o Golias com uma tosca funda e pensei que com um bom golpe de braço eu arrancaria a pistola da mão do rapaz, mas o diabo [o diabo estava presente e sorridente] era conseguir fazer em tempo talmente sincronizado que não permitisse o disparo. Temi pela bala no meio do crâneo e imaginei que se penetrasse [sentia-me meio Capitão Marvel, com pele de aço, mas de repente com 65 anos o aço podia ter-se oxidado, não sei, já não fabricam mais aço como antigamente] seria um estrago menor, talvez ficasse apenas paralítico de alguns movimentos. Pela posição da arma a bala atingiria o lado direito, logo eu paralisaria o lado esquerdo. Será que todo? Pior se fosse bala “dundum”, que estilhaça e deixa pedacinhos milimetrados espalhados por todo o cérebro e todo mundo sabe que a massa encefálica é feito uma mousse só que não tem gosto de maracujá…

De repente senti a percepção do risco, um calafrio, de perder massa, inteligência, cabeça, talento! Idiota, você nunca teve nada disso! Presunção, não! Não é à toa que passam você para traz a toda hora e ocasião. Essa é a síndrome do cara modesto que acaba finalmente, convencido disso, descansado da correria que foi concorrer a vida toda para promoções, promoções, quadros de acesso, remoções, promoções. Merda!

A arma quase encostava na minha testa, logo acima do nariz, entre as sobrancelhas. Deu uma coceirinha fora de hora e quase pedi ao menino para coçar com a arma mesmo, mas ele podia pensar que eu estava gozando a cara dele…Olhei nos olhos dele e perguntei quantos anos tinha e ele repetiu o já monótono “passa tudo”. Desta vez eu respondi em português castiço, calmo e bem colocado: menino, tenho pouco dinheiro e acho que você não vai ficar satisfeito, não tenho celular [menti], não adianta levar os cartões de crédito que eu anulo ali na frente no primeiro telefone que encontrar e você só teve mais trabalho depois de ainda correr o risco de ser preso. Posso dar o relógio, é um ótimo Seiko de uns novecentos reais. Olhou-me incrédulo. Devia pensar que estava diante de um louco que conversava com ele em tom normal, tentando fazê-lo raciocinar um pouco. “Mas como? Pensaria: esse cara é mesmo um idiota, não percebe que a pistola vai lhe mandar chumbo com um toque meu no gatilho?”

Contei as vezes que o outro menino de camisa bege fora da calça gritava “dispara!”. Quatro. O meu preferido, segurando firme a pistola, armava-a mais uma vez e repetia o “passa tudo”. Passo o que tenho, nem mais nem menos, quer ver? Vou abrir o paletó e retirar a carteira. Nela, você vai ver cinco cartões de crédito [aliás um é de débito] e uns cento e oitenta reais. Tá bom? “Passa!”. Sem pressa, passei o dinheiro e exibi a carteira. “Agora o relógio”. Lentamente retirei meu Seiko de estimação do pulso e pensei nos bons serviços que me prestara, nas tantas vezes que me ajudara a chegar atrasado em reuniões, nas ocasiões que o culpei, na sua dureza japonesa inoxidável. Seria meu terceiro relógio roubado por ladrões de galinha, sempre ao lado do carro, parados nos faróis luminosos. Foi sempre como se quisessem roubar-me o tempo, mas o tempo insistiu em ficar comigo, passando, passando, passando, até me deixar velho como hoje sou. Não adianta nada perder o relógio. Nem roubado o tempo deixa-me. Passa sem relógio mesmo.

Sinto a síndrome de meus sessenta e cinco anos e digo ao menino que insistia em segurar a arma engatilhada em cima da minha testa que ele se está arriscando a matar-me e eu podia ser morto. Nada sentiria e passaria desta para a casa dos espíritos, enquanto ele ficaria com a culpa ou o sentimento dela, muito maior que a do cartório, seria acusado de um crime e poderia ser condenado pelo assassinato de um cidadão que poderia ser seu pai. Já pensou? Perguntei. Sem resposta, temi que o menininho me estivesse achando um chato e decici dar logo o relógio. Enquanto isso nos fractais, que se sucediam, o tempo não passava o minuto, mas eu sentia como se estivesse submetido àquela humilhação há horas. O motorista apatetado segurava firme a direção.

De repente, assim como chegaram foram-se e eu gritei com o motorista que partisse. Demorou o taxista catatônico, para o cúmulo [não o cu do mulo] acelerou muito devagar e vi o menino ordenador de camisa bege vindo em nossa direção. Dei um safanão no taxista e gritei de novo: acelera! Corre! Acelerou, mas não correu.

Disso resulta que estou vivo e ganhei mais essa experiência anônima de pessoas que me roubam a vida toda. É definitivamente a minha síndrome: ser roubado. Roubaram-me tudo, a carreira, os louros [não os caucasianos], os postos, menos o tempo, ainda que tenham levado os relógios: com este são dois Seikos [bons japoneses, meio precisos demais] e um Mido [um suiço de segunda classe que insiste em marcar o tempo com acerto]. Não seria pelo relógio ou pelos cento e oitenta reais que choraria perdas. Nem sei mais chorar…Só choro de emoção ou de raiva, mas não das perdas, que seria perda de tempo. Voltei para o assalto cotidiano de gente graúda que não usa pistola. Estão na moda.

Roma, 5 de maio de 2006.




DIÁLOGO COM UM DESCONHECIDO





UM[A] POETA NA NET


[diálogo aleatório com o desconhecido - bi_@xxx.com]




Bi_ :

Roubaram meu tempo

e essa sintese obrigatória me faz medíocre

eu que passava horas olhando as antíteses pela porta da alma, não vejo mais nada a não ser abreviações

e não vejo mais nada além de flores nas flores

essa falta de tempo me dá medo de deixar de ser sensível

já é noite e eu tenho que escolher em contar como foi meu dia ou descansar para mais um outro

lembro de Clarisse

não é que eu esteja triste hoje eu só estou cansado

não me negarei a ti

embora não tenha tanto a oferecer

e quando o novo dia nascer rouba o meu tempo

eu sei que tu mo devolverás quando eu pedir

Abraço, Bi

F :

um muro de jasmins pendentes/ brancos perfumados/ rondam nosso encontro.

Quando eu era criança, escondia-me atrás de um muro/lá aprendi as safadesas miúdas que o tempo só faz crescer/

nem me esqueci nem tanto vivi/

que o tempo é cúmplice meu e faço dele arremedos de momentos felizes/somados.

Sabe, você me trouxe de volta o tempo/

que me andava faltando e negava o próprio calor do sol.../nem sei porque a gota que se desprendia no orvalho da manhã atraiu-me/ não pela gota,/ mas pelo bom gosto de uma composição que para outros não atrai.

Você depois fechou-se para o mundo e traiu-me/ quando me contou que apagou seus poemas e "blog".

O golpe veio a galope com sua negação de si mesmo, na desconstrução de tudo.

Vejo que o tenho de volta/ alegra-me por perceber que já se desprenderam as amarras...

Espero sua palavra como quem quer sentir o que pode ter sido insensível não

fosse seu gênio e seu perfil num "site"de águas turvas.

Abraço, F

Bi_:

eu queria dizer tantas coisas sobre mim sem precisar falar nada

F :

você trouxe um perfume de que eu carecia/

e buscava equivocado encontrar,/

secreto, naquele universo que hoje me perturba.

Fala!

Bi_ :

( ) Sem precisar falar nada,

fala tu.

F:

Relembra que desvendei o segredo que escondia aquele "site" de onde retirei tudo que descobri...

minha descoberta dispersou os véus que me disfarçavam quem sou que faço o que sou

passei-lhe meu estro grato por deslizar em água doce.

Só o gênio de sua composição evitou que eu continuasse no universo como pó sideral e nunca fosse nada, apenas o negro buraco indecifrado:

quero a contrapartida e sinto que você me dará nosso momento para falar do que amamos ou sofremos e de tudo aquilo que escrevemos.

Fala!

Passou tanto tempo de minha espera

entre telefonemas não respondidos

e negações

chorei sua forma aniquilada, chorei a criatura que se negava, chorei nada poder em minha "humana insuficiência"...

"Como inútil taça cheia que ninguém ergue da mesa, transborda a dor alheia meu coração sem tristeza" [FPessoa], mas hoje presumo que serei recompensado.

Fala!



Rio, em algum momento em 2009