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domingo, 4 de outubro de 2009

NOTAS DE VIAGEM

FIRENZE
[anotações de viagem]



“A thing of beauty is a joy forever” [Keats]

Sempre desacreditei da compartimentalização da arte em períodos e nesse descrédito recordo-me de Dona Horizontina, minha severa e exata professora da língua portuguesa a corrigir-me por ignorar [deliberadamente, direi] distinções entre textos barrocos, clàssicos e contemporâneos, para ressaltar a beleza que neles conseguia encontrar. Tampouco era dado a confrontar passagens do poema com períodos inteiros na prosa que nos era apresentada para leitura obrigatória. Sentia-lhes a beleza.

Para o jovem aluno do curso “clássico” daquela época, importava mais a identificação do belo que sua classificação em estilos distribuídos por períodos.
Irredento e rebelde, preferia contemplar a criação ela própria, desobrigado das descrições escritas que lhe desmereciam o impacto. Jamais concordei em descrever paisagens de Renoir ou quadro de Rafaello Sanzio. Tomei notas baixas por me recusar ao papel indigno de mediocrizar gênios.

Nunca interpretei Pessoa nem muito menos reescrevi Machado tampouco aceitei discutir o casual das discussões de Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança.
Entendi o personagem que existiu em Pessoa e em todos os seus heterônimos, Caieiro ou Ricardo Reis ou Álvaro de Campos, para viver suas reflexoes com a intensidade de

“Quem me roubou a minha dor antiga, /e só a vida me deixou por dor?...”

ou

“…ver portos misteriosos sobre a solidão do mar […] a dolorosa instabilidade e incompreensibilidade/ deste impossível universo/ a cada hora maritima mais na própria pele sentido!/ …”

Sei quem são pelos seus textos.

Do mestre a quem devemos a consolidação da lingua portuguesa no Brasil, Machado, ficou-me Capitú e Quincas Borba, muito menos Machado-pessoa do que Álvaro de Campos ou Caieiro, personagens. Cresceram-me no tempo Quixote e Sancho, personagens, deixou-me Cervantes ou até mesmo o muitas vezes pícaro diálogo entre os dois, que é a obra.

A arte é o que é, criação do artista, intemporal e presente na percepção de quem a aprecia.

Keats e a eternidade de Florença dizem-me que a beleza é intemporal e está presente no ano da Graça de 2009, outubro. Seus personagens, criadores e incriados, ultrapassaram o mito, tornaram-se parte, inspiraçao e idéia, no imaginário dos homens de todas as épocas. Representam tanto o homem e sua capacidade criativa quanto a independente beleza.

Florença é meu pouso obrigatorio na Itália, desde que pela primeira vez a visitei, em 1972. A cada época, um novo encantamento: apaixonaram-me a altivez educada da gente nas ruas e a nobreza das ruelas desta cidade recriada sob o David mítico, o herói jovem, agente da Justiça e da liberdade, valores que a República florentina desejou representar contra a força bruta e a tirania de seus adversarios.

Os beirais longos dos “pallazzi”, cada “loggia” das muitas que arquitetos alocaram em andares altos e múltiplas esquinas aligeiram o peso do granito em construções mais antigas. Janelas decoradas no gosto neoclássico equilibradamente distribuídas em fachadas oferecem a visão de afrescos decorando tetos e paredes visíveis.

O encantamento [e porque não a vaidade?] da arte domina a cidade.
Seu poder financeiro expressou-se durante os séculos da virada entre a Idade Média e o que se denominou Renascimento, para a maior grandeza dos Medici de portentosa força abrangentemente criativa. Bancos, letras promissórias, o uso do garfo e faca combinados, as venezianas largas assim impropriamente chamadas, armas e vestimentas que sofisticaram a vida moderna enaltecem Florença
.
Redescubro com prazer renovado a riqueza do acervo dos “uffizi” substancialmente centrado no “Cinquecento” classico, em coleção de obras de Fillipo Lippi, Rafaello, Michelangelo, Tiziano, compondo um conjunto homogêneo onde aparecem Dürer e os alemães atraídos pelo mecenato que estabeleceu o centro artistico e cultural de Florença.

A Galleria dell’Accademia é Michelangelo e a força expressiva de pedras, mármore de onde retira homens magníficos como se da materia bruta retirasse a alma, repetindo o dualismo quase religioso de mecenas vinculados à Igreja vaticana com sede em Roma.

Há nobreza sobranceira na história e na atitude florentina.
Retorno ao princípio deste texto, para não repetir análises da intemporalidade da arte que tomou conta deste pedaço da peninsula italiana em algum “momento” na transição dos “400”para os "500” e de onde resultou o nosso mundo. Basta constatar que nestes dias felizes ignorei períodos arbitrários da historia da arte para vivê-los todos intensamente, juntos e simultâneos.

Percorri atento alentada exposição do “Settecento” barroco, maneirista, arcádico em suas múltiplas expressões da vida mundana da corte florentina e seus seguidores menores. Vi beleza sempre, mesmo na recriação e no excesso, em cera, em cerâmica,bronze ou porcelana caprichosamente trabalhada pelos “Ginori” de todos os aparelhos de jantar e de vulgares mictórios ainda frequentados em banheiros italianos.

Nas ruas a “folla” de turistas maltrata valores e destrói tradições, mas a vaidade florentina é capaz de reviver, na cozinha, receitas de um tempo remoto de fasto e bom gosto no “Cibreo” detras de Santa Croce. Deliciei-me com um extraordinário “cervello en cartoccio” no sabor delicado da quase “mousse” que a inteligência de um “cuoco” genial soube recriar de neurônios sem sinapses da massa cinzenta de um desprevenido “agnello” de remota lembrança.

Florença, outubro de 2009

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