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quarta-feira, 7 de abril de 2010

FÔLEGO








UM FIM DE SEMANA NA SERRA [de um fôlego]

Os fins de semana na serra eram rotina para fugir do calor do Rio. O frio não era do inverno nas montanhas mas da diferença de altitude permitindo às núvens úmidas circularem pelo longo vale entre montanhas quase pedras sob o sopro da brisa mansa que nos arrepiava à noite como um toque da natureza amena sobre nossas peles saciadas do sol.Tudo levava à descontração e liberdade, com manhãs longas sob cobertas de pluma e os dias a céu aberto sob árvores luxuriantes da Mata Atlântica o sol radiando um calor macio a enfeitar a mata destacando cores entre beijos rasteiros e orquídeas em formas harmoniosas enroscadas nos troncos altos.As conversas ricas entre suposições e conhecimento variavam do local e da hora em que se desenvolviam. Nada pressionava o tempo exceto a luz cambiante que indicava a hora do almoço com o sol a pino e o recolher à casa no lusco-fusco do fim da tarde.O jantar vinha precedido de combinações alcóolicas do puro vinho de sabor doce e suave à boa cachaça transformada em batidas e caipirinhas açucar farto tradicional da cana que nos garantiu um ciclo longo de prosperidade colonial.O uisque e o vodka libavam os poucos sofisticados “estrangeiros” com os mesmos resultados no tagarelar sem fim que se iniciava cedo na noite longa. À mesa tudo misturava tradição e importações culturais entre lombinho carne assada, a farofa de ovos, o arroz soltinho e o inevitável “strogonof”, o salmão na crosta de massa folhada, “pot au vin” alternado com massas ricas em queijo e molhos de manteiga. O bife à milaneza já era um prato nacional entre a tradição e a importação culturais. De novo o vinho meio suco de uva para quem não se importasse ou um chileno honesto para os mais exigentes. O que me recordam essas linhas eram as conversas ilustradas por muita piada de salão jogos de advinhação apostas baratas dos que jogavam cartas e recolhimento de alguns intelectuais que escolhiam os cantos silenciosos para pensar e ler. Não se pensava muito que a divagação espiritual geralmente esbarra no livre pensamento regado a conhaque ou licores locais de jaboticaba goiaba uva ou até de limão numa infusão branda regada a cachaça enriquecida com creme de leite batido e açucar. Aos “estrangeiros” não enganava servido como “limoncello”. Todo pensar não produzia pensamentos de valor real se é que havia valor objetivo neles. O clima depois do jantar era de dúvidas e afirmações. Buscava-se a verdade depois de proposições recheadas de filosofia de botequim. O risco era ilustrar essa verdade com sofismas de formulação discutível e esquecer o problema do significado que transcende o objeto. Era inevitável a discussão da morte e a negação da continuidade da vida passado o extremo. Todos “acreditavam” em Deus criador de todas as coisas mestre do passado do presente e do futuro senhor da vida ministro da morte enquanto alguns demonstravam incredulidade falando do pó que nos tornaríamos ao final da aventura sobre a Terra. Esse umbral sempre separou os crentes dos não-crentes mas ali o sabor da serra e da noite escura permitia suposições e narrativas de fatos extraordinários casos inexplicados.O além inspirava incultas narrativas a assustar o aquém permitindo demonstrações de medo. Uma vez um dos hóspedes tremeu diante da história de um fantasma que circulava pela região e penetrava as casas enquanto todos dormiam para exibir-se. Refugiou-se sob u’a manta de lã dando às mãos ao vizinho mais próximo suando frio enquanto temia.

II

Para surpresa de todos juntou-se ao grupo um amigo que vivia distante e não dera notícia de sua vinda ao Brasil. Chegou assim de improviso à tardinha já quando a noite suplantava o dia e trouxe a alegria de sua presenca tantos anos passados sem dar sinal de vida. Eram conhecidas suas peripécias na Europa por relatos de terceiros e sua vida variada entre a vida quase acadêmica e a boêmia nos bares e restaurantes de Paris . Seu aparecimento foi saudado como boa nova e melhor fato vinha com o anúncio que fez da iminente chegada de outros dois amigos também viajantes inveterados. Enquanto se refaziam do primeiro impacto e da alegria do reencontro os dois anunciados apareceram à porta da sala principal. Era uma porta larga de madeira crua que abria rangendo gonzos e batia no desequilíbrio de sua postura equivocada pelo carpinteiro primitivo das redondezas que a fixara. Deviam sentir frio com as roupas quase secas mas úmidas tal como chegara o primeiro amigo mas recusaram trocar preferindo encostar-se nos tijolinhos da mureta que separava o fogo crepitande do restante espaço da sala. Todos os rodearam curiosos sobre suas vidas ao redor do mundo e a inesperada chegada.Calmos e reflexivos relataram com segurança momentos agudos de saudade e isolamento fora do país em particular em Londres a indiferença da gente a vida entrecortada de sustos com a polícia de imigração perseguindo os ilegais os momentos de felicidade com o bom resultado de um trabalho os raros e caros instantes culturais de visita a museus ou shows de artistas itinerantes em parques europeus. Todos bebiam mas os três abstiveram-se alegando razões diferentes tampouco participaram do jantar coerentemente assinalando que haviam acabado de comer juntos elogiavam os pratos a beleza da mesa o espírito de entendimento e a união dos amigos. Queixavam uníssonos de que haviam comido mal e mal acomodados mas estavam satisfeitos. Já secos pelo calor da lareira animaram a conversa da noite e demonstraram seletivamente conhecer particularidades de um ou outro dos amigos reunidos em grupo envoltos na neblina da serra. Sua experiência de vida acentuou a acuidade na formulação de conceitos e frases percebiam o rumo da conversa e os desdobramentos dela sem equívocos. Era como se antevissem a opinião seguinte. Foi surpreendente a participação clarividente dos três visitantes na discussão sobre o fenômeno da vida material e o vislumbre do além dela nada surpresos diante dos raciocínios arrevezados ou fantásticos de um ou outro no grupo. Traziam invariavelmente sem hesitar argumentos sobre a beleza da vida. O nível da conversa subiu nitidamente. O primeiro visitante era um homem dedicado a leituras e gozava de reputação intelectual. Procurou materializar o tema passando da prosa à poesia elevada à mais pura manifestação do espírito humano onde a mente prescinde das amarras da lógica em busca da liberdade. A discussão voltou-se para a literatura e retornou à liberdade nas apreciações sobre o valor da metáfora como meio de aproximar a palavra e a frase das alturas do pensamento. Pensamento irredutível à palavra. O intangível e incomunicável no ato de puro pensar.As cabeças produziam idéias aos borbotões mal acostumadas com a preguiça de outras noites embotando-lhes o juízo e a inteligência. Mas seria inteligente tentar transformar em palavras idéias do livre pensar? O amigo inicial que anunciou os demais dissertou longamente sobre os benefícios da meditação no que chamou de diálogo consigo mesmo como forma de compreender os fenômenos do conhecimento e de interpretação do real. Sua espiritualidade incentivou confissões em palco aberto do grupo da serra e dominou o rumo da conversa. De superficiais e vazios de repente emaranharam-se nebulosos nos domínios da filosofia. Negou a ciência como verdade preferiu abordá-la como manifestação de fé identificando-a com formas religiosas de explicação do cosmos. deus foi um capítulo à parte em discurso quase formal perguntando se todos haviam tomado consciência do abismo sem fundo que ilustrava a morte. Onde se esconderia deus perguntou retoricamente para tentar explicar deus como resposta à angústia existencial do conhecimento de todas as coisas e à expectativa ansiosa da morte fim impossível pra a inteligência do ser. O que é há de ter um sentido e uma razão. Não se termina o que é. O homem animal pensador sôfrego de estancar sua dúvida existencial pensou um deus e nas limitações do pensamento e da expressão construiu-o a sua imagem e semelhança tal como figurado eloquentemente por Michelângelo no teto inspirado da Capela Sistina.A eternidade é instituição correlata. O tragico nessa correlação é não ter-se tornado ainda possível representar a eternidade como pareceu fácil representar um deus. Talvez pensou quem soube pensar talvez a eternidade seja o buraco negro no qual o ser humano atirou inconseqüente seu destino. Os dois companheiros de viagem mais tímidos e tolerantes admitiram a realidade das aparências como fonte de revelação das leis não escritas que regem o universo mas como o primeiro amigo perguntaram insistentemente sobre a localização desse deus sua forma e poder. Voltaram ao tema da meditação para diferentemente do amigo concluir que nem sempre esse estado da consciência religa o homem à natureza mas produz no seu limite um ser sozinho consigo mesmo. O debate evoluiu entre essas sensibilidades mas derrapou no valor reduzido da palavra como representação da idéia. Como traduzir o pensamento em palavras? Como antes disso fazer do pensamento uma consequencia do ato de pensar que o precede e abrange? A alienação do ato de pensar de seus produtos o pensamento e as palavras equivocou a todos e pôs a sorrir os visitantes. A abstração do ato de pensar não os angustiava o pensamento e sua tradução em palavras sim no que perturba o processo de comunicação.Bebidos e cansados os amigos reunidos na serra foram adormecendo sob a névoa dos raciocínios formulados e ouvidos iludidos entre a compreensão e a dúvida seguramente impressionados e curiosos ainda da chegada dos três viajantes. Quem temia continuou a temer e talvez mais sensível sentiu um calafrio quandos os três visitantes partiram despedindo-se com um aceno de mão seguros de si mesmos tal como chegaram. Os hospedeiros despertaram tarde na manhã seguinte e o comentário central foram os temas aflorados e o intrincado raciocínio dos três visitantes. Aquela que temia continuou a temer e tímida confessou que não dormira assediada por um sonho de morte. O fantasma dos arredores não aparecera mas era como se o tivesse feito. Medrosa confessou que não sentira agradável a chegada dos visitantes e desgostara dos temas postos em discussão. Foi chamada de bêbada delirante mas criou um clima de surpresa e indagação quando pediu que todos meditassem sobre a resposta simples como parte de sua insonia ou sonho: pensem no inconcebível. Por que e de onde vieram os tres visitantes? Nesse momento preciso o jornal da manhã em edição extraordinária pela televisão anunciava a queda durante a noite de um avião de linha em meio ao oceano e desvendava a lista de passageiros embarcados em Paris: os nomes dos três amigos encabeçavam a lista.

Petrópolis, junho de 2009.


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