Total de visualizações de página

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

CRÔNICA DE UM ASSALTO




aos meninos que perderam o juízo


Puta merda, logo hoje vem esses caras me encher o saco com esse assalto. Meninos bonitos, bem vestidos, insinuantes [na certa trepam todo dia, enquanto eu já mais pra lá do que pra cá vou perdendo potência e higidez física]… Chegaram sem cerimônia, mandaram baixar o vidro do lado do passageiro onde eu me sentava no taxi a caminho do aeroporto com uma segurança de donos da bola [e de fato tinham uma pistola linda, prateada, bem desenhada, possivelmente leve]. Dois toques no vidro e o motorista logo baixou as calcinhas, quer dizer o vidro do meu lado [que bobo ele não era de baixar o dele].

Que perda de tempo! Eu com pressa para chegar ao aeroporto, na rua Bandeira Paulista, movimentada, lojas nobres, e vem o menininho de camisa bege, sorridente e charmoso e me diz “passa tudo”. Que maluquice, pensei, passa tudo porque? Perguntei ainda sem muito ânimo – “o que você quer?”. A resposta veio do outro de camisa vermelha e bonezinho invertido na cabeça. Apoiou o cotovelo na janela para firmar o braço e engatilhou a pistola. Fiquei maravilhado com aquele aparelho fálico apontando-me o meio da testa. Lá estava eu refém de dois jovens bandidinhos bem arrumados, educados, cara de universitários.

Ao redor passavam carros, muita gente com sacolas de compras, um carro de som tocava um “jingle” anunciando “a segurança de um seguro de vida” e eu ali arriscando a minha bestamente. Porra, que vão querer eles com esse “passa tudo? Dou tudo ou não dou? Minto, finjo?

Lembrei de David que derrotou o Golias com uma tosca funda e pensei que com um bom golpe de braço eu arrancaria a pistola da mão do rapaz, mas o diabo [o diabo estava presente e sorridente] era conseguir fazer em tempo talmente sincronizado que não permitisse o disparo. Temi pela bala no meio do crânio e imaginei que se penetrasse [sentia-me meio Capitão Marvel, com pele de aço, mas de repente com 65 anos o aço podia ter-se oxidado, não sei, já não fabricam mais aço como antigamente] seria um estrago menor, talvez ficasse apenas paralítico de alguns movimentos. Pela posição da arma a bala atingiria o lado direito, logo eu paralisaria o lado esquerdo. Será que todo? Pior se fosse bala “dundum”, que estilhaça e deixa pedacinhos milimetrados espalhados por todo o cérebro e todo mundo sabe que a massa encefálica é feito uma mousse só que não tem gosto de maracujá…

De repente senti a percepção do risco, um calafrio, de perder massa, inteligência, cabeça, talento! Idiota, você nunca teve nada disso! Presunção, não! Não é à toa que passam você para traz a toda hora e ocasião. Essa é a síndrome do cara modesto que acaba finalmente, convencido disso, descansado da correria que foi concorrer a vida toda para promoções, promoções, quadros de acesso, remoções, promoções. Merda!

A arma quase encostava na minha testa, logo acima do nariz, entre as sobrancelhas. Deu uma coceirinha fora de hora e quase pedi ao menino para coçar com a arma mesmo, mas ele podia pensar que eu estava gozando a cara dele…Olhei nos olhos dele e perguntei quantos anos tinha e ele repetiu o já monótono “passa tudo”. Desta vez eu respondi em português castiço, calmo e bem colocado: menino, tenho pouco dinheiro e acho que você não vai ficar satisfeito, não tenho celular [menti], não adianta levar os cartões de crédito que eu anulo ali na frente no primeiro telefone que encontrar e você só teve mais trabalho depois de ainda correr o risco de ser preso. Posso dar o relógio, é um ótimo Seiko de uns novecentos reais. Olhou-me incrédulo. Devia pensar que estava diante de um louco que conversava com ele em tom normal, tentando fazê-lo raciocinar um pouco. “Mas como? Pensaria: esse cara é mesmo um idiota, não percebe que a pistola vai lhe mandar chumbo com um toque meu no gatilho?”

Contei as vezes que o outro menino de camisa bege fora da calça gritava “dispara!”. Quatro. O meu preferido, segurando firme a pistola, armava-a mais uma vez e repetia o “passa tudo”. Passo o que tenho, nem mais nem menos, quer ver? Vou abrir o paletó e retirar a carteira. Nela, você vai ver cinco cartões de crédito [aliás um é de débito] e uns cento e oitenta reais. Tá bom? “Passa!”. Sem pressa, passei o dinheiro e exibi a carteira. “Agora o relógio”. Lentamente retirei meu Seiko de estimação do pulso e pensei nos bons serviços que me prestara, nas tantas vezes que me ajudara a chegar atrasado em reuniões, nas ocasiões que o culpei, na sua dureza japonesa inoxidável. Seria meu terceiro relógio roubado por ladrões de galinha, sempre ao lado do carro, parados nos faróis luminosos. Foi sempre como se quisessem roubar-me o tempo, mas o tempo insistiu em ficar comigo, passando, passando, passando, até me deixar velho como hoje sou. Não adianta nada perder o relógio. Nem roubado o tempo deixa-me. Passa sem relógio mesmo.

Sinto a síndrome de meus sessenta e cinco anos e digo ao menino que insistia em segurar a arma engatilhada em cima da minha testa que ele se está arriscando matar-me e eu podia ser morto. Nada sentiria e passaria desta para a casa dos espíritos, enquanto ele ficaria com a culpa ou o sentimento dela, muito maior que a do cartório, seria acusado de um crime e poderia ser condenado pelo assassinato de um cidadão que poderia ser seu pai. Já pensou? Perguntei. Sem resposta, temi que o menininho me estivesse achando um chato e decici dar logo o relógio. Enquanto isso nos fractais, que se sucediam, o tempo não passava o minuto, mas eu sentia como se estivesse submetido àquela humilhação há horas. O motorista apatetado segurava firme a direção.

De repente, assim como chegaram foram-se e eu gritei com o motorista que partisse. Demorou o taxista catatônico, para o cúmulo acelerou muito devagar e vi o menino ordenador de camisa bege vindo em nossa direção. Dei um safanão no taxista e gritei de novo: acelera! Corre! Acelerou, mas não correu.

Disso resulta que estou vivo e ganhei mais essa experiência anônima de pessoas que me roubam a vida. É definitivamente a minha síndrome: ser roubado. Roubaram-me tudo, a carreira, os louros [não os caucasianos], os postos, menos o tempo, ainda que tenham levado os relógios: com este são dois Seikos [bons japoneses, meio precisos demais] e um Mido [um suiço de segunda classe que insiste em marcar o tempo com acerto]. Não seria pelo relógio ou pelos cento e oitenta reais que choraria perdas. Nem sei mais chorar…Só choro de emoção ou de raiva, mas não das perdas, que seria perda de tempo. Voltei para o assalto cotidiano de gente graúda que não usa pistola. Estão na moda.

Roma, 5 de maio de 2006.

Nenhum comentário:

Postar um comentário